Os adultos atormentados pela ansiedade da morte
não são pássaros estranhos que contraíram alguma doença exótica,
mas homens e mulheres cuja família e cultura
falharam em tricotar as roupas protetoras adequadas
para que resistissem ao frio gelado da mortalidade.
(Irvin Yalom, Psiquiatra)
não são pássaros estranhos que contraíram alguma doença exótica,
mas homens e mulheres cuja família e cultura
falharam em tricotar as roupas protetoras adequadas
para que resistissem ao frio gelado da mortalidade.
(Irvin Yalom, Psiquiatra)
UM PROLOGO
Dia 26 de julho de 2022, às 01:52 da manhã, meu pai morreu. Ao meio-dia seguinte iniciou-se o velório. Às 16:00 seu corpo foi colocado dentro do jazigo da família no cemitério do Araçá, em São Paulo, capital. O que se seguiu foram dias de burocracias em bancos, cartórios, seguros. Dias que viraram semanas, meses. Nenhum convite a qualquer rito de passagem de uma realidade a outra. De filha a órfã. Todos os paradigmas mudaram subitamente. Nenhum tempo ou espaço para a elaboração. Nada.
O espectro da morte vinha rondando meu imaginário de forma muito forte a cinco anos. Começou com processo de pesquisa e criação do meu primeiro espetáculo solo, Criatura, Uma Autópsia, que fricciona o romance Frankenstein e a vida de sua autora Mary Shelley. Shelley, antes de completar 25 anos, e no período de escrita e publicação da obra, perdeu quatro filhos, irmã, companheiro, amigos. Com os mortos de sua vida inventou o grande cadáver reanimado que inauguraria o gênero ficção-científica e a levaria, finalmente, a um tipo de imortalidade. Espetáculo estreado, veio a pandemia de Covid-19, que nos assolou a todos com o medo iminente da perda. Então o diagnóstico oncológico da minha mãe e a morte de sua irmã e irmão, meus tios, num período inferior a um ano. E culminou com a morte inesperada do meu pai, após uma breve e sofrida internação hospitalar por insuficiência cardíaca agravada pelo Covid. A morte passou de objeto de pesquisa intelectual, distanciada, a uma realidade que cobriu tudo com um véu.
Não venho de uma família com crenças religiosas. Sou atéia, materialista. Não via, de imediato, nenhum caminho satisfatório para a elaboração da maior dor que já senti na vida. Dois dias depois da morte do meu pai, tomei por exemplo Mary Shelley, e passei a usar o barro desse luto como material para meu trabalho. Iniciei o único caminho que a mim parecia possível para essa elaboração. Escrevi um projeto de circulação de Criatura no qual a morte e o luto eram protagonistas. Como parte das ações de contrapartida, inclui palestras sobre luto e morte na contemporaneidade sob diversas perspectivas filosóficas e religiosas. O projeto foi contemplado, em primeiro lugar, me provando que o assunto é não apenas pertinente, mas necessário. Precisamos falar sobre a morte. Abertamente, no cotidiano, na mesa de jantar.
No processo de realização daquele projeto, as conversas e leituras sobre morte e luto despertaram em mim o desejo de escrever, e de escrever surgiu a necessidade de fazer um espetáculo. Uma das palestrantes do projeto, a Professora Maria Julia Kovacs, livre docente sênior do Instituto de Psicologia da USP e umas das fundadoras do Laboratório de Estudos sobre a Morte (o qual fui, no segundo semestre de 2023, estudante ouvinte como pesquisa para este espetáculo), ao ouvir sobre meu processo de busca pelo entendimento do luto me disse que o que eu fazia era elaborar através de uma espiritualidade laica. Ela tem razão. Meu templo é o teatro, minha liturgia é a pesquisa artística, minha reza é a dramaturgia. E esse é o germe deste espetáculo.
QUEDA DE BALEIA OU CANTO PARA DANÇAR COM MINHA MORTE é um espetáculo sobre o tabu da morte na vida cotidiana, sobre o processo de eliminação do rito fúnebre nas sociedades capitalistas ocidentais, sobre medo, silêncio e negação. Mas é acima de tudo um espetáculo sobre a vida. Como escreveu o filósofo Baruch Espinosa, meditar sobre a morte é meditar sobre a vida.
A MORTE INTERDITA
Para se ser verdadeiramente feliz
é necessário contemplar e refletir sobre a morte
ao menos cinco vezes ao dia.
(Ditado do Butão,
reino budista no extremo leste do Himalaia)
A morte é, para nós ocidentais, talvez o último intransponível tabu. Não falamos sobre ela. Não sabemos lidar com ela. No entanto, ela é também a única certeza inexorável. O historiador Philippe Ariès, em seu livro História da Morte no Ocidente, chama essa relação que desenvolvemos com a morte de Morte Interdita, um fenômeno iniciado no século XX que perdura pelos nossos dias, em que a morte e tudo que diz respeito a ela deve ser evitado a todo o custo. Num período histórico em que guerras, tragédias coletivas, violência, epidemias e pandemias são noticiadas em tempo real como nunca fora possível, e que a indústria cultural capitaliza em cima desses temas com espetacularização, a morte cotidiana se transformou em um assunto velado. Vivemos, inclusive, nos últimos anos num estado de necropolítica em meio à maior pandemia da história recente, e ainda assim não conseguimos falar de morte, da nossa própria morte, daqueles que amamos. Falamos de morte como uma generalidade social, como um elemento político, mas não conseguimos discutir a morte como um assunto cotidiano. O processo de morte foi higienizado, burocratizado. O avanço da ciência e da medicina prolongou nossas vidas, mas também mudou a forma como morremos. Não se morre mais em casa, mas em hospitais – lugares onde busca-se vencer a morte, muitas vezes prolongando o inevitável. Ritos fúnebres são cada vez mais rápidos, padronizados e industrializados – com o boom de cremações comerciais. A hipervalorização da juventude não quer nos deixar lembrar que morremos. Nós, homo sapiens sapiens. Sempre esquecemos o último sapiens do nosso gênero. Somos humanos que não só sabemos, mas sabemos que sabemos. Para muitos historiadores e antropólogos, o nascimento da cultura humana como a entendemos está ligado ao luto. A morte inspirou os primeiros ritos humanos, os primeiros hieróglifos, as primeiras histórias contadas em volta da fogueira. O nascimento da filosofia, da religião, da arte. Elaborar o luto inaugura quem somos, e, ao renunciamos a isso, renunciamos a uma angústia metafísica essencial. Não falar da morte não a afasta, apenas a torna mais temerosa.
Como escreveu o psicanalista Rubem Alves em A Morte Conselheira: “Houve um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, o nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de que nos livramos de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de quanto mais poderosos formos diante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...), quanto mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, a Morte que podia ser conselheira sábia, transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que para recuperarmos um pouco a sabedoria de viver seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas para isso seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz.”
QUEDA DE BALEIA
Memento mori, memento vivere.
(Lembre-se que vais morrer, lembre-se de viver.
Lema da filosofia estóica,
que tratava a morte como algo natural e certo
que não deve ser temido mas sim, elaborado.)
O processo de construção dramatúrgica de QUEDA DE BALEIA OU CANTO PARA DANÇAR COM MINHA MORTE inclui uma extensa pesquisa teórica e historiográfica, especialmente sobre ritos fúnebres em diversas culturas. Revela a surpreendente história do desaparecimento do ritual e do processo de luto no ocidente capitalista e industrializado, mas também o quanto ele ainda é ricamente praticado em diversas tradições ao redor do mundo. Os contrastes entre essas realidades e no que isso reverbera subjetivamente são os focos centrais da narrativa.
QUEDA DE BALEIA, o título, é inspirado no processo post-mortem das grandes baleias azuis que encontram seus fins no oceano aberto. Onde a carcaça de uma baleia cai, um novo ecossistema é formado. A queda de uma baleia inaugura um novo mundo. Essa é uma das metáforas que permeiam o espetáculo. A relação entre morte e vida, e as possibilidades de celebrar a morte como parte da experiência humana, e não algo fora, estrangeiro a ela.
OU CANTO PARA DANÇAR COM MINHA MORTE
A morte do meu pai, meu processo de luto meu próprio medo diante da morte foram os disparadores para essa pesquisa e, finalmente, para a dramaturgia, mas este não é necessariamente um espetáculo autobiográfico. Me empresto como ponto de partida para usar a primeira pessoa como Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
QUEDA DE BALEIA OU CANTO PARA DANÇAR COM MINHA MORTE acompanha uma mulher que acaba de morrer e procura elaborar o luto de si mesma no curto espaço de tempo que tem antes de ser dado fim ao seu corpo. Na sua busca por processar sua própria morte – ironicamente a única coisa que nós não podemos fazer, empiricamente – faz digressões sobre nossa relação com a finitude, visitando as possibilidades de ritos fúnebres das mais diversas culturas e suas implicações filosóficas e práticas. Construo uma personagem que vai vasculhar as subjetividades do medo de morrer e do luto em meio às objetividades da vida, em busca de melhor encontrar (e dançar) com a própria morte. Nessa procura dá voz também a outras personagens, diante da morte e diante do luto. Idosos diante de sua infantilização por familiares e cuidadores e a conspiração silenciosa de não discutir o fim iminente, Antigones pandêmicas impossibilitadas de velar e enterrar seus mortos, proibidas de ritualizar suas perdas. Este espetáculo pretende ser uma provocação para a reflexão, um convite a levar o assunto para as conversas cotidianas. Não tem a pretensão de abordar a morte no campo do trágico – como o choque da violência inesperada, das guerras ou desastres coletivos (apesar de tocar no luto pandêmico), ou a questão do suicídio ou homicídio. A ideia é tratar da morte como o inevitável que podemos contemplar antes que ocorra, processar enquanto estamos vivos.
Após o processo de pesquisa e criação de Criatura, Uma Autópsia eu havia decidido que o próximo espetáculo seria leve, solar. E é. QUEDA DE BALEIA OU CANTO PARA DANÇAR COM MINHA MORTE pretende ser uma celebração, e entender a morte como a conselheira citada por Rubem Alves, a quem devemos olhar como um farol que ilumina nossa experiência e não como algoz.
Bruna Longo, ABRIL de 2024
(Arte: Queda de Baleia, tinta acrílica e grafite sobre papel. Victor Grizzo, agosto de 2023)